quarta-feira, 30 de março de 2016

Nº 19.019 - "A decisão de Gilmar sobre Lula e o risco da parcialidade do julgador, por Marcos Villas-Bôas"

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30/03/2016

 

A decisão de Gilmar sobre Lula e o risco da parcialidade do julgador, por Marcos Villas-Bôas

 


Por Marcos Villas-Bôas
A decisão de Gilmar Mendes sobre Lula

Quando os fins políticos e os interesses dominam a tomada de decisão

Gilmar Mendes (STF) decidiu suspender a eficácia da nomeação de Lula para Ministro da Casa Civil com fundamento em suposto desvio de finalidade do ato administrativo. 

Toda análise jurídica é valorativa. Não há como negar isso. Por tal razão, há regras de impedimento e suspeição para julgadores, de modo a evitar que suas paixões e seus interesses terminem dominando os argumentos jurídicos na análise. 

Agora, no Brasil, juízes se manifestam publicamente com tom político claro e depois julgam as pessoas que foram objeto de suas manifestações. O juiz Sérgio Moro aceita ir a eventos claramente políticos do PSDB, mas, ao chegar lá, diz que não tem qualquer relação com o partido. No STF, o próprio Gilmar Mendes se tornou comentarista político, fazendo críticas públicas a partidos e políticos que depois julga com fundamentos questionáveis.

As normas de impedimento e suspeição estão previstas no Novo Código de Processo Civil (NCPC), que começou a viger em 18/03/2016. Como sempre, os dispositivos não conseguem abarcar todas as situações passíveis de ocorrer no mundo concreto. É preciso, portanto, realizar analogias, utilizar de princípios para entender como deve agir um julgador ao se deparar com um caso que envolve paixões ou interesses seus.
A função do Poder Judiciário é central num Estado Democrático de Direito e, portanto, não devem pairar dúvidas sobre a imparcialidade do juiz. Por isso, existem diversos dispositivos que tratam do assunto no NCPC. 

O inciso I, do art. 145, do NCPC, diz que há suspeição do juiz quando ele é amigo íntimo ou inimigo da parte. Quando Gilmar Mendes surge na mídia fazendo críticas duras a Dilma, a Lula e ao PT, perde a imparcialidade para julgá-los, sobretudo num processo judicial que discute um tema político crucial. Ele pode ser considerado um “inimigo” de Lula. O fim da norma parece ser o de impedir que alguém julgue processo de um adversário seu, pois suas paixões e interesses podem levar, ainda que subconscientemente, a prejudicá-lo. 

O inciso V, do art. 145, do NCPC, diz que há suspeição, também, em caso de interesse no julgamento em favor de uma das partes. Se há clara e firme posição política em favor de um lado, evidente o interesse na vitória desse lado em um determinado processo que tem enorme cunho político.
Se Sérgio Moro ainda tenta fingir que não tem lado, apesar das ligações da sua família com o PSDB e da sua ida a eventos do partido, Gilmar Mendes não faz questão de esconder que é um inimigo claro do PT, de Dilma e de Lula. 

É plenamente plausível a interpretação de que será parcial o juiz quando as partes e interessados no processo tenham um lado político contrário àquele assumido pública e ferrenhamente por ele.
Um julgador pode ter preferências políticas, mas, ao manifestá-las publicamente tentando influenciar pessoas, o seu interesse se caracteriza como forte e evidente. O mesmo se dá com a presença de um julgador em eventos políticos e com a ligação de familiares a partidos. 

De quebra, a advogada do processo judicial julgado por Gilmar Mendes, Marilda de Paula Silveira, é coordenadora do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual ele é um dos sócio-fundadores, o que indica uma relação forte, talvez íntima, entre ele e a advogada do caso. 

Como disse Teori Zavascki há pouco tempo, um julgador deve solucionar problemas, e não criar novos. Se ele quer ser um ativista político-partidário, que o faça fora do tribunal. Com tantos bons julgadores no país, não há porque manter alguém num caso ao qual ele está intimamente ligado, e isso vale também para o Ministro Toffoli, quando julga as questões do PT e filiados. 

Gilmar Mendes deveria ter passado o caso para alguém menos parcial. No caso de dúvida sobre impedimento ou suspeição, o parâmetro de decisão deve pesar em favor da imparcialidade.
Ao menos, o Ministro Fachin demonstrou ser uma pessoa séria e, por ter amizade com algum dos advogados que assinaram os HC de Lula, se declarou suspeito para julgá-lo. Essa é a postura que se espera de um ministro da mais alta corte do país. 

Uma das provas do risco de uma forte parcialidade do julgador é a decisão de Gilmar Mendes que suspendeu a eficácia da nomeação de Lula. O único fundamento foi um suposto desvio de finalidade, que, salvo melhor juízo, não ocorreu!

Como a expressão indica, é preciso se desviar de um determinado fim que um ato administrativo tem. Se o ato for mais vinculado, aquele cujos fins estão claramente estabelecidos na lei, será mais fácil declarar um desvio de finalidade. Se o ato for extremamente discricionário, como é uma nomeação de ministro, que sequer é motivada expressamente, será muito complicado decidir por desvio de finalidade.

O ato de nomeação de um Ministro de Estado por um Presidente da República tem os seus requisitos previstos no caput do art. 87 da Constituição. O nomeado precisa 1) ser brasileiro, 2) ter mais de 21 anos e 3) estar no exercício dos seus direitos políticos. Cumpridos esses requisitos por Lula, ele deveria se tornar ministro, ao menos sob o ângulo formal.

Para uma análise substancial, é preciso verificar se o ato não foi tomado apenas na sua forma, ou seja, se a Presidenta da República não abusou do direito de nomear ministros apenas para dar foro privilegiado a Lula, ou mesmo se não simulou a nomeação.
O abuso poderia ser caracterizado se a Presidenta da República criasse, por exemplo, um cargo apenas para colocar Lula em foro privilegiado. É como no planejamento tributário abusivo, por meio do qual se realiza atos que não seriam utilizados normalmente. Há ali um exclusivo objetivo de aproveitar vantagens tributárias.
Se o ato de nomear um ministro visa exatamente a nomeá-lo para um cargo, eventual simulação seria caracterizada se fosse comprovado que esse ministro sequer tomou posse ou que, tomando posse, ele não foi trabalhar, como acontece muito no Brasil. 

No caso de Lula, ele tomou posse, quer trabalhar e a Presidenta precisa dele. Qual, então, o desvio de finalidade? O argumento de Gilmar Mendes é o de que, ao nomear Lula, que é investigado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, o objetivo seria unicamente deslocar a competência de julgá-lo do juiz federal de primeira instância, Sérgio Moro, para o STF.

Primeiro, para que houvesse desvio de finalidade, repito que não basta comprovar o interesse da Presidenta da República de deslocar a competência e fazer Lula ser julgado pelo STF, pois a finalidade do ato de nomeação está cumprida se o cargo não é apenas criado para ele, se ele é apto ao cargo existente, se toma posse e se vai trabalhar. 

A despeito das provas que indicariam a intenção da Presidenta e de Lula de aproveitarem uma das consequências jurídicas da nomeação, e a despeito da sua legalidade, não há desvio de finalidade desde que o ato tenha realmente atingido os seus fins, que é nomear Lula, dar posse a ele e tê-lo trabalhando num cargo para o qual é apto. 

É fraco o argumento de que o fim seria unicamente de permitir que Lula fosse julgado pelo STF, quando ele vinha sendo cogitado para integrar o governo há bastante tempo e tem os atributos para exercer o cargo. Não é o fato de que a sua nomeação lhe aproveita para fins de evitar o seu julgamento por alguém que ele entende ser parcial que causará, por si só, desvio de finalidade.  

A decisão de Gilmar Mendes leva ao absurdo de nos questionarmos se é preciso criar um percentual dos fins que estão por detrás de cada ato administrativo. Para Gilmar Mendes, as gravações telefônicas comprovam que o fim foi 100% o de fazer Lula ser julgado pelo STF. 

Para alguns, o ato de nomeação tem 100% de finalidade de transformar Lula o Presidente da República e fazer de Dilma uma peça figurativa. 

Para outros, há 50% de interesse em fazer Lula o “novo Presidente” e 50% de protegê-lo de Moro. Para outros, há 33,33% de interesse em dar uma oportunidade de Lula lutar politicamente após a condução coercitiva dele e outros fatos que mancham sua imagem, 33,33% de interesse em ter a experiência dele nesse momento difícil e 33,33% em vê-lo livre de Moro, mas sujeito ao crivo do STF. 

Como anular um ato completamente discricionário de nomeação de ministro com base em opiniões sobre qual o real interesse da Presidenta da República por trás do ato, quando, na prática, a finalidade não foi desviada? O ato é perfeito na forma e na substância. 

O que se pretende é impedir que ele emane os seus efeitos, pois parece haver uma estratégia da Presidenta e de Lula de aproveitá-los para que ele não seja julgado por Moro, mas pelo STF. Se isso é ilegal, então não poderá haver mais planejamento tributário no Brasil, pois o planejamento é um ato ou conjunto de atos perfeitos na sua forma e na sua substância, mas com foco na vantagem de reduzir tributos. É uma estratégia legal, como é a nomeação de Lula. 

Apenas é possível concluir pelo desvio de finalidade se o juiz olha somente para o deslocamento de competência e esquece que Lula foi Presidente da República durante 8 anos, que está na política há muitas décadas e tem, portanto, atributos de sobra para ser um Ministro da Casa Civil, um cargo que requer, acima de tudo, confiança e habilidade política. 

Se Lula tivesse sido nomeado para Ministro da Saúde, por exemplo, ainda haveria algum espaço para discussão, que, nesse caso, seria dura. Observe que, certo ou errado, é muito comum a nomeação de políticos para cargos de confiança no Brasil. Um Ministro da Saúde é alguém que deveria entender profundamente de saúde pública? Em princípio, sim. No entanto, não há uma regra nesse sentido no nosso país e desconheço questionamentos judiciais de inúmeras nomeações que são feitas pelos Chefes de Executivo. 

Quando Marcelo Castro foi nomeado para o cargo de Ministro da Saúde, inúmeras pessoas falaram sobre sua inaptidão para exercê-lo, porém não tenho conhecimento de qualquer ação judicial para impedir a sua nomeação. 

É preciso haver uma discussão séria no Brasil a respeito dos cargos de confiança, podendo ser criadas, talvez, normas para diminuir a possibilidade de nomeação de indivíduos desqualificados. Devem prevalecer o conhecimento teórico e a experiência prática, e não conchavos políticos. Nada disso tem a ver, no entanto, com a nomeação de Lula, que é um dos políticos mais experientes do país e que ajudaria a Presidenta Dilma no governo. 

A maior parte da fundamentação da decisão de Gilmar Mendes é uma citação literária que contradiz a própria decisão. Ele cita um exemplo emblemático de um dentista acusado de “estupro de pacientes para ocupar o cargo de Ministro de Transportes, no momento exato em que o Tribunal de Justiça julgará apelação que o condenou a 20 anos de prisão”. Nesse caso, o intuito da nomeação, segundo o autor, seria claramente o de evitar julgamento pelo TJ. 

Não, não seria “claramente”. Os casos concretos podem ser muito complexos. E se o dentista já tivesse trabalhado como Secretário de Transportes por 12 anos? E se a sua paixão sempre foi, apesar de graduado e ocupado inicialmente como dentista, o estudo de políticas de transporte público e mobilidade urbana, temas que estudou no mestrado, doutorado e, inclusive, em pós-doutorado no exterior? 

Essa suposição serve para dizer apenas que visões preconceituosas, pré-concebidas, podem determinar o resultado da tomada de decisão sem uma maior reflexão. Não que esse tenha sido o caso do autor citado por Gilmar Mendes, que apenas tentava mostrar casos bem drásticos para servirem de exemplo a suas construções. Não discordo que, no caso do dentista, haveria boas chances de se concluir pelo desvio de finalidade, mas o caso não é “dado”, como alguns poderiam concluir. 

Outro exemplo desse autor, que está lá transcrito na decisão de Gilmar Mendes, é o caso de um médico renomado, portador de títulos acadêmicos, ser convidado para assumir a Secretaria de Saúde do Estado e que responda acusação de lesões corporais leves. Nessa situação, segundo ele, é “ridículo” concluir que o objetivo seria subtrair a competência do Juizado Especial Criminal.

Parece-me que esse último exemplo se aplica ao caso em análise. Além de, como dito, Lula ser muito adequado para o cargo ao qual ele foi nomeado, ele sequer é alvo de processo judicial. O que há, até o momento, é investigações e uma proposta de denúncia não apreciada pelo Poder Judiciário. Não há ação judicial a ser obstruída. 

Toda a comoção criada pelo caso decorre do pré-julgamento de que Lula seria culpado pelos crimes que alguns dos investigadores, com apoio maciço de boa parte da grande imprensa, dizem terem sido cometidos por ele. 

As últimas ligações telefônicas de Lula estão todas publicadas na Internet e compartilhadas em redes sociais. Não se encontrou nenhuma prova de crime. Lula deve ser julgado como qualquer outro cidadão, porém o fato de ser um ex-Presidente da República, por óbvio, dá circunstâncias específicas ao caso. Não se trata de lhe conferir direitos ou poderes especiais, mas é preciso tomar cuidado, por exemplo, com as paixões envolvidas na análise de sua situação por investigadores ou julgadores. 

Talvez, por tal razão, seja até melhor o seu julgamento pelo STF, que é o tribunal mais alto do país e tem um maior caráter político, o que não justifica um ministro como Gilmar Mendes, inimigo político de Lula, amigo da advogada e das partes contrárias, decidir a sua vida. 

Se o STF não decidir no lugar da Presidenta quem deve ser os seus ministros, Lula irá trabalhar, realizará mudanças no governo e o suposto desvio de finalidade estará ainda mais espancado. Enquanto isso, a sua vida pode continuar sendo devassada, sendo que o STF pode e deve agilizar a apreciação da denúncia contra ele e, em seguida, se for o caso, julgar o processo. 

Se incomoda tanto o fato de Lula não ser mais julgado pelo juiz que comparece em eventos do PSDB, dever-se-ia estar questionando o deslocamento da competência apenas, e nunca o ato de nomeação, impedindo que a Presidenta se sirva de Lula para resolver as crises política e econômica do país. 

De qualquer sorte, não há porque vedar o deslocamento da competência. Não há obstrução de Justiça por dar a competência ao tribunal mais importante do país, que já julgaria a questão em última instância.
Por um lado, o tal deslocamento de competência acelera o processo e faz com que Lula tenha um resultado transitado em julgado mais rápido, o que é bom para o país. 

É preciso que o Poder Judiciário tome muito cuidado ao julgar esse e outros casos, pois, ao seguir o clamor popular - que pode nem ser o clamor da maioria da população, mas é traduzido como tal por parte da grande imprensa - pode terminar ferindo gravemente direitos e gerando precedentes perigosos para o futuro de toda a sociedade brasileira. 


Marcos de Aguiar Villas-Bôas é Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, advogado licenciado, doutor em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito pela UFBA, atualmente faz pesquisas independentes na Harvard University e no MIT - Massachusetts Institute of Technology.
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