domingo, 24 de agosto de 2014

Contraponto 14.597 - "Corporações 'verdes': Cada árvore da Amazônia um título no mercado"

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24/08/2014


Corporações “verdes”: Cada árvore da Amazônia um título no mercado

Do Viomundo - publicado em 24 de agosto de 2014 às 13:33
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Ilustração sugerida pelo Franco Atirador, nos comentários
O capitalismo industrial é, por sua própria natureza, destrutivo de todas as formas de vida na Terra. Isso vale mais ainda quando ele vem casado ao capitalismo financeiro. Toda forma de vida no planeta está a caminho de ser transformada em mercadoria — inclusive as pessoas, consideradas ‘capital humano’ no palavreado do século 21.

Cory Morningstar, no Counterpunch

por Luiz Carlos Azenha

Considerem um dia, no futuro, quando cada uma das árvores da floresta amazônica estiver catalogada, receber um código de barras e representar um título no mercado financeiro. Um título que renda comissões e taxas de administração para quem cuidar das transações envolvendo a papelada.

Tais títulos serão transacionados em uma bolsa de valores. É pouco provável que esta bolsa fique sediada em Xapuri, no Acre. Seria mais viável em Londres ou Nova York. Afinal, além de expertise no mercado financeiro, é lá fora que vivem ou são representados, através de instituições financeiras — bancos, corretoras — os que terão capital para comprar tamanha montanha de papel.

É possível que se crie, inclusive — também fora do Brasil, pelos mesmos motivos apontados acima — uma bolsa para lidar com créditos de carbono. O industrial recém-instalado em Nairobi, no Quênia, com capital britânico e tecnologia de segunda classe, já descartada em casa por ser altamente poluente mas ainda dentro de padrões considerados aceitáveis no Quênia, compra créditos de carbono no mercado que permitam a ele detonar uma floresta nativa local, desde que os efeitos sejam mitigados em outra parte do planeta. Na Amazônia, por exemplo, onde os créditos comprados pelo industrial congelam uma gleba — e a riqueza local — em nome de salvar o planeta.

Agora pensem na possibilidade de certificar uma cidade “verde”, no Brasil. Uma cidade cujas propriedades rurais sejam monitoradas via satélite.

Uma cidade onde a floresta nativa, original,  já foi todinha praticamente desmatada das matrizes de madeiras nobres, substituídas por outras espécies, sem que o satélite de monitoramento consiga fazer tal distinção.

Uma cidade dominada por latifundiários. Uma análise feita por “especialistas” determina quais as áreas da propriedade devem ser reflorestadas, quais podem ser utilizadas para pasto, para a agricultura ou para reflorestamento com eucaliptos, o tal ‘deserto verde’ dos chupins da água do solo. Seria uma experiência realmente notável. Só uma ONG com expertise internacional poderia vender tais “serviços ambientais”. As consequências políticas de tal esquema seriam duas: o congelamento da estrutura fundiária desigual e injusta e a possibilidade de fazer avançar a fronteira agrícola sobre floresta virgem, de forma “sustentável”.

Ponto para os fabricantes de tratores, os detentores de royalties sobre sementes, os fabricantes de satélites de rastreamento — naturalmente, nenhum deles baseado em Paragominas, Pará, mas provavelmente em Peoria, Illinois ou Dortmund, Alemanha.

Os esquemas acima descritos permitiriam, dentre outras coisas, a contínua exportação de tecnologia superada e do “serviço sujo” do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul, não por acaso uma região do planeta onde se concentra a pobreza e onde os moradores de Bhopal, na Índia, estão muito mais dispostos a conviver com os ácidos da Union Carbide — hoje subsidiária da Dow Chemical, sediada em Houston, Texas — ainda que, eventualmente, um vazamento de produtos químicos mate 3.787 pessoas e contamine mais de 500 mil.

Quem quer agrotóxicos poluindo o Reno ou acabando com a cobertura vegetal das margens do Danúbio, matando a indústria ‘limpa’ do turismo? Quem vai atacar os manancias subterrâneos europeus para gastar 15 mil litros de água na produção de um quilo de carne bovina?
É óbvio que não falo em tese.

Foi o capital sobrante no Japão que financiou a construção da usina de Tucuruí, no Brasil, com a finalidade de transformar bauxita em alumínio, um processo industrial eletrointensivo. De quebra, com desconto no preço da energia. Os recursos naturais são nossos, o passivo ambiental e os empregos de baixa qualidade também. A transformação do alumínio em produtos de alto valor agregado e o desenvolvimento da tecnologia que essa renda garante… são deles.
Assim funciona o capitalismo.

Há esquemas fabulosos para o “plantio” de milhares de cataventos no Norte da África, com o objetivo de produzir energia que seria transferida para a Europa. Quanto os africanos vão cobrar pelo vento? O mesmo que o Brasil cobra pela água que exporta na soja?

Há esquemas fabulosos, com apoio do Banco Mundial, para desenvolver melhor as quedas de água de Inga, no Congo, com o objetivo de produzir a energia cujo uso prioritário seria na extração das riquezas minerais do continente. Será que os recursos decorrentes disso seriam majoritariamente investidos na população local? Duvido. Hoje, o coltan — mineral essencial para a indústria eletroeletrônica — continua saindo do Congo em barris para a Bélgica, com as migalhas que ficam sustentando milícias que travam uma guerra civil devastadora pelo controle das minas.

[Veja aqui o episódio do programa Nova África a respeito]

Não foi por acaso que, numa visita que fiz às famosas minas de diamante do interior de Serra Leoa, nos anos 2.000, encontrei mineiros trabalhando em condições subumanas, com as cidades do entorno sem rede de água ou esgoto. Ouvi o lamento de um morador local: “Você acredita que tiraram daqui bilhões de dólares em diamantes?”.

A guerra civil que devastou o país não foi por acaso. Ao fim e a ao cabo, o desmantelamento da estrutura estatal de Serra Leoa permitiu a pilhagem dos recursos locais sem qualquer controle.

Rendeu até um filme de Hollywood, “Diamantes de Sangue”, parte de uma campanha de certificação dos diamantes cujo objetivo não declarado era impedir que diamantes não certificados derrubassem o preço internacional das pedras.

Os lucros derivados, obviamente, não são encontráveis hoje em Freetown, a capital de Serra Leoa.
Tudo o que descrevi acima acontece, mas não é dito pelo jornalismo que, em vez de esclarecer, encobre. Vitória da hipocrisia.

Os debates sobre o movimento ambientalista mundial, do qual Marina Silva é uma expoente no Brasil, não são novidade. Há testemunhos confiáveis de que a senadora, neste campo, tem grande credibilidade.

Porém, há também uma boa dose de hipocrisia no “verdismo”. Não estou falando apenas de revistas multicoloridas que defendem o meio ambiente em papel couché.

Em artigo no Counterpunch, de 2013, Cory Morningstar fez uma crítica demolidora de Bill McKibben, o organizador da campanha Do The Math, Faça as contas, cujo objetivo é livrar o mundo dos combustíveis fósseis e que está ganhando adesões crescentes nos Estados Unidos, na Europa e em outras partes do mundo.

Bill é um ativista-celebridade que trouxe para seu lado gente respeitadíssima, como a autora Naomi Klein.

Logo agora que o Brasil descobriu o pré-sal, Bill!

A ONG de Bill McKibben é conhecida como 350.org. Uma das campanhas anteriores dele, batizada de 1sky, foi parcialmente financiada por um fundo da família Rockefeller.

A campanha de Bill começou através de um tour dos Estados Unidos. Ele tenta convencer instituições religiosas, educacionais, governos estaduais e locais a eliminarem o uso de combustíveis fósseis.

As ideias de Bill ganharam tração considerável depois que ele publicou, na revista Rolling Stone, um artigo nomeado A Nova Matemática Terrível do Aquecimento Global.

A Rolling Stone é darling dos democratas norte-americanos, cuja tradução para a política brasileira seria a de — definição minha — “sociais democratas consumistas com dor de consciência”.

Cory Morningstar é uma jornalista que se dedica a analisar o que chama de “complexo industrial das instituições sem fins lucrativos”, ou do onguismo.

Em sua crítica a Bill McKibben, ela reproduz trechos de artigos publicados no site do Projeto de Justiça Ecológica Global, nos quais vozes discordantes do ambientalismo norte-americano rebateram Bill:
Anne Petermann, por exemplo, que denunciou o domínio das corporações sobre a Rio+20, escreveu:
Os mesmos mercados que nos levaram à beira do abismo podem agora nos fornecer os paraquedas? [Bill] McKibben destaca que, sob este sistema, os que têm dinheiro têm o poder. Então, por que estamos tentando reformar este sistema? Por que não o estamos transformando?
… se você se concentra apenas em eliminar os combustíveis fósseis, sem mudar o sistema subjacente, então coisas muito ruins tomarão o lugar deles, porque o que é insustentável é o próprio sistema. É um sistema desenhado para transformar ‘capital natural’ e trabalho humano em lucros gigantescos para uma pequena elite: os chamados 1%. O sistema, seja ele dirigido por combustíveis fósseis ou biocombustíveis ou ainda instalações massivas de energia solar ou do vento, vai continuar devorando o ecossistema, desalojando comunidades baseadas na floresta, povos indígenas e agricultores de subsistência de suas terras, esmagando os sindicatos de trabalhadores e fazendo a vida, de modo geral, um inferno para a grande maioria da população do planeta. Isso é o que ele faz.
De Keith Brunner, que propõe ação direta para combater o capitalismo industrial no coletivo de justiça climática Red Clover:
Bill [McKibben] oferece campanhas de desinvestimento, à la África do Sul [Nota do Viomundo: Boicote econômico que ajudou a acabar com o apartheid], como estratégia preferida para atingir as empresas de combustíveis fósseis financeiramente. Soa muito bem, até que você olha para as tendências dos últimos anos dos grandes investidores institucionais – fundos de pensão e de universidades – de colocar o dinheiro (em geral através de um intermediário privado), entre outras coisas nas riquezas naturais dos “mercados emergentes” e em fundos de infraestrutura, o que facilita a usurpação de terras em todo o Sul [do planeta]. É isso o que os administradores de fundos ‘verdes’, “progressistas”, estão propondo — e isso é um problema. Este é outro ponto que ele não contempla: sim, as corporações dos combustíveis fósseis são os grandes lobos maus, mas o sistema de investimento e retorno que exige uma economia sempre em crescimento é tão problemático quanto elas (isso se chama capitalismo). O fato do administrador do fundo da Universidade de Harvard, por exemplo, ter uma “responsabilidade fiduciária” de atingir um determinado retorno anual para seu dinheiro, significa que ele tem de investir em fundos lucrativos, em crescimento econômico, ou em empresas ou estados (qual é a diferença?) que cresçam através da exploração de pessoas e do desmantelamento do ecossistema.
O artigo de Cory Morningstar, que acredita que “economia verde” é uma tremenda embromação, lembra o papel de um grupo supostamente progressista, batizado de Ceres, que reúne investidores dos Estados Unidos. É descrito como “organização sem fins lucrativos que advoga liderança sustentável. Mobilizamos uma poderosa rede de investidores, empresas e grupos de interesse para acelerar e expandir a adoção de práticas de negócios sustentáveis e para construir uma economia global saudável”.

Morningstar, em sua denúncia, nota que numa das conferências da Ceres — onde a campanha da 350.org recebeu destaque — estavam dentre os patrocinadores Bank of America, Citibank e Wells Fargo, a empresa de telefonia Sprint, as automobilísticas Ford e GM e as de jornalismo/entretenimento Walt Disney e TimeWarner, além de outras corporações.
Um trecho do artigo de Morningstar, generosamente traduzido pela Heloisa Villela, é revelador:
As pessoas podem se perguntar porque, afinal, os financiadores da destruição climática vão dar pelota para o clima. Pode-se imaginar porque [Bill] McKibben e seus amigos foram aos bilionários de Wall Street pedir conselhos (e permissão) a respeito de que tipo de desinvestimento seria mais adequado aos seus desejos. Ainda assim, a resposta é simplesmente impressionante: o Faça as Contas não é uma campanha que tenha como objetivo prejudicar (que dirá destruir) Wall Street, as grandes empresas de energia ou o capital financeiro – ao contrário, é uma campanha de relações públicas estratégica, mais uma distração bem orquestrada das massas
Morningstar, que como mencionei acima é crítica do chamado “terceiro setor”, faz observações importantes sobre como o dinheiro de “patrocinadores desinteressados” é capaz de desvirtuar lutas sociais. Vale a pena reproduzir pelo menos dois outros trechos do que ela escreveu:
É preciso notar a obsessão do 350.org exclusivamente com os combustíveis fósseis. Com certeza o 350.org, em acordo com o complexo industrial dos ‘sem fins lucrativos’, está preparando a população estrategicamente para aceitar o que Guy McPherson chama de “a terceira revolução industrial”. Essa agenda da “riqueza climática” inclui soluções falsas, como as biomassas, o consumismo “verde” desenfreado, mecanismos do mercado de carbono como o REDD, etc.
[Nota do Viomundo: REDD, de Reduzindo Emissões de Deflorestamento e Degradação Florestal, é o mecanismo de mercado que gera os chamados 'créditos de carbono', títulos que fazem salivar o mercado financeiro por gerar taxas de administração e outras formas de lucro privado sobre patrimônio público]
O que ela não inclui [a agenda] é: a necessidade urgente de destruir a expansão do império militar, permitindo a transição para o desmantelamento do nosso sistema econômico corrente, referências à indústria do rebanho industrializado [ver o documentário Food Inc], de conservar energia de forma massiva, de empregar táticas de autodefesa a qualquer custo, ou qualquer outra coisa necessária para mitigar a destruição da espécie humana. Em resumo, a agenda não inclui nada que possa ameaçar o sistema atual de forma significativa. É sempre dividir para conquistar, com as ONGs financiadas pelas corporações/elite. O que importa é assegurar que as massas travem batalhas sem a menor importância e nunca “liguem os pontos”, para usar as frases do 350.org. A linguagem é tudo no mundo da fantasia e das relações públicas.
[...]
É preciso notar que a campanha de desinvestimento do 350.org serve a um outro propósito vital. Nós chegamos agora a um ponto crítico, no qual as corporações vão começar a acelerar o processo de se livrar de seus investimentos tóxicos, enquanto se preparam para uma nova onda, sem precedentes, de promover a “riqueza climática”. Nós estamos prestes a testemunhar a transição global para soluções falsamente benéficas, sob a capa da “economia verde”, somadas à completa transformação de tudo em mercadoria e na privatização de bens comunitários por parte das corporações mais poderosas do planeta. Tudo isso enquanto, simultaneamente, elas se banham de verde, como nobres defensoras da terra. No último capítulo da história da espécie humana, essa será a maior mentira jamais contada.
Portanto, num país como o Brasil, onde os debates dos países centrais do capitalismo sempre chegam com o atraso de algumas décadas, é preciso refletir muito quando uma banqueira se apresenta como genuína defensora do patrimônio público da Amazônia.

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